Computação Neuromórfica – Capítulo 10: Treinando redes neurais Spiking (SNNs)

Uma série sobre computação neuromórfica – Capítulo 10

No Capítulo 9: Taxa de Disparo vs. Tempo de Disparo em SNNs, exploramos como as Redes Neurais de Pulsos (SNNs) codificam a informação de forma análoga ao cérebro, o que é fundamental para sua eficiência. O capítulo contrastou a Codificação por Taxa de Disparo (Rate Coding), onde a informação é representada pela frequência dos spikes (oferecendo robustez à custa de latência e maior energia), com a Codificação Temporal (Timing Coding), que usa o momento exato do pulso (como o Time-to-First-Spike – TTFS) para garantir velocidade ultrarrápida e eficiência energética com menos spikes. O entendimento dessa dualidade é crucial, pois a escolha do código de comunicação define a negociação de compromissos entre robustez e latência em aplicações neuromórficas de alto desempenho.

Imagine um cérebro eletrônico, mas que funciona de forma muito mais parecida com o seu. Essa é a promessa das Redes Neurais de Picos (SNNs), a próxima fronteira na inteligência artificial. Diferentemente das redes neurais tradicionais que usam números contínuos, as SNNs se comunicam por meio de pulsos discretos e rápidos chamados picos (ou spikes). O grande desafio? Ensinar essas redes a aprender de maneira eficiente.

Felizmente, a natureza e a ciência nos deram duas abordagens poderosas: uma inspirada diretamente na biologia e outra que “trapaceia” um pouco para usar métodos de IA existentes.

 

Aprendizagem biológica: A plasticidade dependente do tempo do pico (STDP)

Se você já se perguntou como seu cérebro aprende um novo truque ou lembra de um rosto, a resposta está em um fenômeno chamado Plasticidade Sináptica. Basicamente, a conexão (sinapse) entre dois neurônios se fortalece ou enfraquece. O STDP (Spike-Timing-Dependent Plasticity) é a versão desta regra que se encaixa perfeitamente nas SNNs.

 

Como o STDP funciona?

O STDP é fundamentalmente uma regra de aprendizado local e não supervisionada, o que significa que cada sinapse aprende por conta própria, baseada apenas no que está acontecendo entre seus dois neurônios vizinhos. É um princípio de “quem dispara junto, se conecta junto”:

  • Causa e feito (Fortalecimento): Se o neurônio de envio (pré-sináptico) dispara um pico e, logo depois, o neurônio de recebimento (pós-sináptico) também dispara um pico, a sinapse entre eles se fortalece. O neurônio pré-sináptico é visto como o “causador” da ativação.

  • Efeito e causa (Enfraquecimento): Se o neurônio pós-sináptico dispara antes do pré-sináptico (ou muito tempo depois), a sinapse se enfraquece. Essa conexão é descartada por ser inútil ou irrelevante para a ativação.

O tempo entre os picos é a chave de tudo. O STDP permite que as SNNs capturem a estrutura temporal dos dados, tornando-as excelentes para processar informações que mudam ao longo do tempo, como áudio ou séries temporais. É a maneira mais “natural” de treinar uma SNN, espelhando a eficiência energética do cérebro.

A ponte para o sucesso da IA: Os gradientes substitutos (Surrogate Gradients)

A IA moderna é dominada pelo Backpropagation (Retropropagação) e pelo Descenso de Gradiente, os motores que ajustam os pesos em redes neurais profundas (DNNs). O problema é que a forma como um neurônio SNN dispara um pico – tudo ou nada – é matematicamente difícil de usar com esses métodos tradicionais. Não é suave; é uma quebra brusca.

É aí que entram os Gradientes Substitutos (Surrogate Gradients), a solução mais popular para aplicar a força total do treinamento supervisionado (com rótulos e correções) às SNNs.

 

Como os gradientes substitutos funcionam?

É um truque inteligente de engenharia:

  1. O Problema da derivada zero: O disparo do pico é como um “degrau” em um gráfico: plano (derivada zero) em quase todos os lugares e infinito (impossível de calcular) na borda. Isso impede o Backpropagation.

  2. A substituição: Durante a passagem para frente (a rede processando dados), a SNN funciona perfeitamente, gerando picos reais. Mas, durante a passagem para trás (o aprendizado), quando o algoritmo precisa calcular a correção (gradiente), ele substitui a função de disparo real por uma função suave e contínua que é muito parecida, mas que permite o cálculo da derivada.

  3. A aprendizagem: Essa função “substituta” permite que os gradientes fluam pela rede, ajustando os pesos de forma eficiente. Quando o cálculo termina, a função real de pico é usada novamente para a próxima passagem para frente.

Essa técnica transforma o problema de treinar SNNs em um problema de treinamento de DNNs, permitindo que as SNNs alcancem precisão de ponta em tarefas complexas, mas mantendo sua principal vantagem: a eficiência energética durante a inferência (o uso após o treinamento).


O futuro híbrido da inteligência artificial

O contraste entre STDP e Gradientes Substitutos representa a dualidade na pesquisa de SNNs:

CaracterísticaSTDP (Plasticidade Biológica)Gradientes Substitutos (Retropropagação Hackeada)
InspiraçãoBiológica, Aprendizagem LocalEngenharia, Otimização de DNN
Regra de AprendizadoNão Supervisionado (ou fracamente)Supervisionado (com rótulos)
FocoEficiência e Estrutura TemporalPrecisão e Tarefas Complexas
Vantagem PrincipalAutonomia e Baixo Custo ComputacionalMelhor Desempenho em Benchmarks de IA

Muitas pesquisas de ponta agora buscam um modelo híbrido, onde o STDP pode ser usado para uma pré-aprendizagem eficiente e com baixo consumo de energia, estabelecendo uma base de conexões fortes, seguida por um ajuste fino com Gradientes Substitutos para alcançar a máxima precisão em uma tarefa específica.

As SNNs, combinadas com essas regras de aprendizado inovadoras, prometem liberar a IA de sua atual dependência de supercomputadores famintos por energia, abrindo caminho para uma inteligência artificial verdadeiramente ubíqua e de baixo consumo – uma revolução que cabe na palma da sua mão.


Próximo capítulo 

Compreendidas as bases teóricas e as vantagens inerentes das Redes Neurais Pulsadas (SNNs) – da eficiência energética à plausibilidade biológica – é imperativo que o engenheiro e o cientista cognitivo dominem as ferramentas que transformam essa promessa em realidade funcional. O Capítulo 11 será dedicado à exploração dos dois pilares de software que dominam o cenário da Computação Neuromórfica moderna. Iremos mergulhar no Nengo, um ecossistema robusto baseado no Neural Engineering Framework (NEF) que permite a modelagem de SNNs biologicamente plausíveis e em larga escala, focando na função cognitiva em vez do spike individual. Em seguida, faremos a transição do laboratório de simulação para o hardware real, examinando o Lava SDK da Intel. Esta ferramenta de ponta é a ponte crucial, otimizada para o deployment eficiente e de ultrabaixo consumo de energia das SNNs diretamente em chips neuromórficos dedicados, como o Loihi. Prepare-se para conhecer o software que pavimenta o caminho do modelo cerebral teórico para a aplicação prática no silício.

FONTES

  • Bi e Poo (1998) – Descoberta experimental fundamental do STDP

  • Markram et al. (1997) – Outra observação chave que ajudou a definir o STDP

  • Neftci, Mostafa, e Zenke (2019) – Artigo seminal sobre Gradientes Substitutos em SNNs

  • Tutoriais de snnTorch – Recursos práticos sobre a implementação de Gradientes Substitutos

  • Frontiers in Computational Neuroscience – Publicações sobre STDP e aprendizagem não supervisionada

  • Conferências de IA (NeurIPS, ICML, AAAI) – Artigos recentes sobre desempenho de SNNs com SG

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